A abordagem aristotélica da virtude

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Justiça e generosidade, embora sejam duas palavras confortantes, nem sempre estão juntas em uma mesma situação. Justiça pressupõe um estado de equilíbrio, de imparcialidade, de neutralidade, de igualdade, enquanto a generosidade denuncia o desequilíbrio e pressupõe uma condição de partilha. De acordo com Aristóteles, a justiça denota,  ao mesmo tempo, legalidade e igualdade,  e traz embutida o objetivo de manter a ordem social, preservando os direitos de todos em sua forma legal. É justo quem cumpre a lei, é justo também aquele que dá ao outro o que lhe é devido. É nesta última forma que se confunde com a generosidade. Para entendermos a diferença  – ou a íntima relação –   entre justiça e generosidade,  precisamos antes entender o que é a virtude.

 

Se procurarmos no dicionário certamente encontraremos a palavra virtude definida como qualidade moral particular, ou seja, a disposição do indivíduo em praticar o bem. Não é característica da pessoa, mas a inclinação que orienta a pessoa para a prática do bem. Assim, muitos foram os filósofos que se detiveram a conceituar a virtude. Hoje ficamos com a abordagem de Aristóteles, que a divide em duas: virtude intelectual e virtude moral. Intelectual é o resultado gerado da aprendizagem, da educação, da inteligência. Virtude moral é o resultado do hábito,  que nos torna capazes de praticar atos justos.  Intelectual ou moral,  ninguém nasce virtuoso. As virtudes são adquiridas pela repetição dos atos, que geram o costume e que, por sua vez, geram os atos. Estes não podem se desviar,  nem por defeito, nem por excesso, pois a virtude está no equilíbrio, na justa medida. Entendemos por moral,  o conjunto de regras adquiridas da cultura, da educação, da tradição, do cotidiano, que orienta o comportamento humano dentro da sociedade.  Está associada aos valores e convenções estabelecidos coletivamente para cada sociedade a partir da consciência individual, que distingue o bem do mal,  e rege as relações saudáveis e harmoniosas. A moral está sujeita às mudanças no tempo e no espaço, portanto, é relativa. Podemos então resumir grosseiramente o pensamento de Aristóteles e entender que a virtude completa, de forma excelente,  a natureza de um ser.  Sua relatividade está exatamente nessa excelência, enquanto para um pássaro a virtude pode estar em voar alto e depressa, para o homem ela está na ação guiada pela razão.

 

A generosidade também é uma virtude, cujo conceito possibilita múltiplas possibilidade de entendimento. Aristóteles dá a noção de virtude como ação equilibrada  (o extremo, para a falta ou excesso, ele dá o nome de vício), um conteúdo que permanece até os dias de hoje plenamente atual. Generosidade de menos é avareza, generosidade em excesso é extravagância. Seguindo então a linha aristotélica, praticar a generosidade é agir de modo equilibrado, com retidão e sabedoria. Nem falta, nem excesso. A generosidade, intimamente associada à partilha, é como dar remédio a um doente, tem que ser na dose certa, a fim de proporcionar saúde e recuperação. O excesso transforma o remédio em veneno, a falta não produz o efeito desejado e também pode levar à morte. Embora a generosidade seja uma virtude que atrai elogios, algumas condições são inerentes aos atos generosos, e olhares apressados podem esconder outras imperfeiçoes. Vamos aos exemplos porque este é um campo minado. Quem dá mais do que pode não é generoso, é perdulário.  Nem sempre a doação de um bem material é um ato de generosidade. . O que se dá tem que vir de fontes lícitas e retas. O motivo da doação tem que ser guiado pela retidão. Dar porque atrai olhares, dar porque alimenta meu egoísmo, não uma finalidade reta.

 

Assim sendo, parece-nos mais fácil sermos justos, que sermos generosos. Tanto faz. A justiça também lida com conteúdos internos. A justiça também implica em tratar os desiguais de forma desigual e isso é generosidade.  Afinal, ninguém sai ileso de qualquer tipo de relacionamento. Somos afetados pelos que estão à nossa volta e afetamos os outros com aquilo que somos. Se compreendermos que a generosidade praticada a nós mesmos é a mesma que praticamos com os outros, podemos  sim contribuir e mudar o mundo ao nosso redor para melhor. Podemos perceber que aquilo que somos e doamos ao outro é algo contagiante. Se nos fizermos felizes, acabaremos fazendo outros felizes e, se assim for, denunciaremos a responsabilidade que é viver em sociedade de modo saudável. Virtude não é o que nos torna felizes, mas aquilo que nos torna dignos de sermos felizes.